Governo gaúcho aposta na exploração do carvão para “retomada do crescimento”. Foto: Maia Rubim/Sul21

Felipe Prestes 

Em outubro de 2017, com 51 votos favoráveis e apenas um contrário, a Assembleia Legislativa aprovou a instituição da Política Estadual do Carvão Mineral e a criação do Polo Carboquímico. “O Governo do Estado acaba de dar um importante passo na retomada do crescimento”, comemorava um vídeo institucional do Piratini. O Polo Carboquímico seria “o mais moderno da América Latina”. Por meio de uma usina de gaseificação, o carvão seria transformado em gás natural sintético e suas cinzas se tornariam matéria-prima de produtos como fertilizantes e tijolos. Segundo o Governo, haveria retorno de ICMS e geração de empregos imediatamente. O Piratini apresentou estimativas de que até 2042 haveria acréscimo de 23,4 bilhões no PIB, com arrecadação de 3 bilhões em ICMS (embora a lei preveja incentivos fiscais) e geração de 7,5 mil empregos diretos e indiretos. 

De acordo com a legislação, o Polo Carboquímico é formado por dois complexos, cada um com nove municípios: o Complexo do Baixo Jacuí e o da Campanha. “Naquele momento havia dois projetos que tinham interesse de fazer uso diverso do carvão. Lá embaixo (na Campanha) era a Vamtec, com protocolo de intenções firmado em 2014, e no Baixo Jacuí era a COPELMI com a sul-coreana Posco (hoje, as parceiras seriam a norte-americana Air Produtcs e a chinesa Zhejiang Energy Group)”, conta o secretário de Infraestrutura e Meio Ambiente, Artur Lemos. 

Assentamento Apolônio de Carvalho, produtor de arroz orgânico, será destruído caso a Mina Guaíba seja instalada. Foto: Carol Ferraz/Sul21

Na área do Baixo Jacuí, a Mina Guaíba, localizada entre os municípios de Charqueadas e Eldorado do Sul, seria o primeiro passo deste Polo Carboquímico, com a extração da matéria-prima que alimentaria, então, a planta de gaseificação do carvão. Porém, já no pontapé inicial do Polo Carboquímico, vozes se levantam questionando o modelo de desenvolvimento proposto.  

“O que se espera quando falamos em desenvolvimento? Uma mudança qualitativa. Acesso à educação, saúde, abastecimento de água, alimentos saudáveis, lazer, esporte. Fica claro, então, que se está falando de crescimento, não de desenvolvimento”, afirma a professora do Departamento de Sociologia da UFRGS Lorena Fleury. 

A docente é coordenadora-adjunta do Grupo de Pesquisa Tecnologia, Meio Ambiente e Sociedade (TEMAS), que protocolou junto à FEPAM um laudo técnico que, entre outras questões, fez um levantamento do PIB Per Capita, Índice de Desenvolvimento Socioeconômico (IDESE) e Índice de Desenvolvimento Humano dos municípios que mineram carvão no Estado. “Esses municípios têm indicadores piores que a média do Rio Grande do Sul. Então, além de ser uma concepção limitada de desenvolvimento, mesmo essa concepção não se sustenta”, afirma Fleury. 

A professora de Sociologia é cética quanto à hipótese de instalação de uma cadeia produtiva maior, com agregação de valor com a produção de insumos como fertilizantes, cimento, entre outros. “Isso fica muito nesse campo da promessa. Nos municípios onde há mineração a gente até hoje não observa essa dinamização. Esses projetos sempre partem da ideia de que agora vai ser diferente. Para a gente avaliar é muito precário”, afirma. 

Rualdo Menegat, professor do Instituto de Geociências da UFRGS.
Foto: Carol Ferraz/Sul21

Fleury não é a única a colocar em xeque o projeto do Polo Carboquímico. O professor de Geociências da UFRGS Rualdo Menegat critica o fato de o licenciamento ambiental ser apenas para a mineração e não para o polo.

“A equação não está completa, porque onde vai ser consumido este carvão? Essa é uma incógnita. O minerador diz que este carvão se destina a um polo carboquímico. Aonde está esse polo? Aonde está o projeto? Como tu vais extrair o carvão para um polo que não existe nem em projeto? É uma promessa”. 

Empregos gerados, empregos perdidos 

Por email, a COPELMI afirma que o projeto Mina Guaíba é estratégico para o futuro do Rio Grande do Sul: “O projeto vem para fomentar o desenvolvimento econômico, social e tecnológico do Estado, permitindo assim a atração de novos projetos de uso moderno e sustentável do carvão. O polo carboquímico que dependerá do carvão dessa mina tem a capacidade potencial de alavancar o PIB acumulado do RS em 4,43% em um horizonte de 20 anos”, aponta a companhia. 

Segundo a COPELMI, “um estudo da UFPR demonstra que o investimento em um Polo Carboquímico na região do Baixo Jacuí poderá chegar à soma de 4,4 bilhões de dólares”,  Ainda de acordo com a empresa, em um período de cerca de 30 anos da Mina “serão gerados, aproximadamente, 1.150 empregos diretos e 3.360 empregos indiretos”. Ressalta ainda a companhia que a região sofre grande impacto com a perda do Polo Naval e que o Polo Carboquímico “se apresenta como uma alternativa para absorver esta mão de obra desempregada”.

Para Lorena Fleury, os números de emprego são inflados, por considerarem todo o período de duração da mina. A professora de Sociologia da UFRGS aponta que há, inclusive, incongruências no tempo de duração do projeto, que ora aparece como 23 anos, ora como 30 anos. “Nós analisamos o Anuário Mineral do Rio Grande do Sul e constatamos que é um setor que emprega cada vez menos. E é preciso considerar também os empregos que são perdidos com a mina”.  

Francisco Milanez, presidente da Agapan. (Foto: Guilherme Santos/Sul21)

 Dentre os futuros desempregados, podem estar as 72 famílias que produzem arroz orgânico, hortaliças e frutas no Assentamento Apolônio de Carvalho. E antes de serem retiradas do local os assentados ficariam cerca de cinco anos produzindo ao lado da mina, muito provavelmente perdendo a certificação de orgânico para seus produtos. O fim deste assentamento também enseja outras reflexões sobre o modelo de desenvolvimento. “Não cabem dois tipos de desenvolvimento no mesmo lugar”, afirma o presidente da Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural (AGAPAN), Francisco Milanez.

“As cidades mais modernas do mundo, na Europa e nos Estados Unidos, estão criando leis, obrigando que, a seu redor, a produção seja agroecológica para não contaminar a água que bebem. Sem nenhum mérito Porto Alegre tem isso, porque se instalou ali um assentamento que faz agroecologia. Isso é a tendência mundial”, afirma. 

Pressão sobre os serviços públicos 

Em audiência pública realizada em Guaíba, o vereador de Eldorado do Sul Rogério Munhoz (PSB) manifestou sua desconfiança quanto aos benefícios da instalação de uma mina de carvão no seu município. “Mesmo tendo uma arrecadação maior, vai ter que gastar mais em saúde. A população vai ter muitos problemas respiratórios. Então, é uma arrecadação burra, digamos assim. E a relação entre a atividade e o número de empregos não compensa. Pelos impactos que vai ter é muito pouco emprego”, opina. 

Além disto, teme problemas na captação de água. “Hoje, somos dependentes da captação de água de Guaíba. Finalmente, conseguimos autorização para que a CORSAN capte água do Jacuí no município de Eldorado, mas com a mina vamos captar água poluída”, lamenta.

Lorena Fleury afirma que, além da pressão sobre os serviços públicos por causa da poluição, as megaminerações costumam trazer consigo um fluxo migratório. “Empreendimentos como esses atraem pessoas, pressionam a infraestrutura, e nem sempre essas pessoas são absorvidas”, afirma. Até aumento nos índices de criminalidade ocorrem alguns casos, pontua a professora da UFRGS. 

Secretário evita “antecipar o debate” 

Artur Lemos, secretário do Meio Ambiente e Infraestrutura (Foto: Divulgação)

Em 2017, quando foi aprovada a criação do Polo Carboquímico, o então secretário estadual de Minas e Energia, Artur Lemos, considerou a aprovação “estratégica” para o Estado. Hoje, Lemos acumulou as funções que já tinha com a pasta do Meio Ambiente, se tornando secretário de Infraestrutura e Meio Ambiente e adota um tom cauteloso no debate sobre o modelo de desenvolvimento proposto. “Não queremos antecipar o debate. Antecipar uma situação sem antes o nosso órgão técnico do Estado identificar se o projeto que hoje estaria próximo, que utilizaria o carvão da mina que está em licenciamento, é viável ou não do ponto de vista técnico”, afirma. 

Lemos evita falar sobre a geração de empregos, por entender que não é a discussão do momento, e coloca em xeque até mesmo se o Polo Carboquímico se tornará realidade caso a Mina Guaíba não saia do papel. “A gente não entra no mérito de questão de emprego, porque hoje a discussão não é esta. Hoje a discussão é: a mina de carvão nesta posição é viável ambientalmente? Sim ou não. Se não é, terá polo carboquímico sem esta mina? Não sei. Não é o Estado que está gerenciando isso. Se licenciar, quais as questões associadas? Bom, aí sim fazer todo um trabalho, uma política pública em cima. Enquanto não acontecer essa definição do ponto de vista técnico, é antecipar um debate em que a gente pode até causar uma certa preocupação na sociedade”, diz. 

Sobre a questão do Assentamento Apolônio de Carvalho, Lemos afirma que precisaria ser garantido que possam manter suas atividades. “Não é assim, retira a pessoa de um terreno fértil, produtivo, e coloca no centro da cidade. Se houver algum reassentamento, você reassenta uma família que trabalha com determinado produto, ela tem que ir para uma localidade em que ela consiga ter continuidade na produção deste produto. Em uma localidade em que não deixe em situação desfavorável. Essa atenção tem que se ter em qualquer reassentamento”. 

A respeito do baixo desenvolvimento dos municípios da Região Carbonífera, o secretário acredita que faltou planejamento no passado. Artur Lemos compara com as situações de Venezuela e Emirados Árabes com relação ao petróleo. “Nós podemos pegar a Venezuela como exemplo em que não se utilizou a riqueza do petróleo para canalizar e verter em benefício da sociedade e no próprio desenvolvimento sustentável, porque o recurso mineral é finito. Você não pode acreditar que ele vai manter a economia ad eternum. Se a gente pegar os Emirados Árabes, ele canalizou o recurso daquela atividade que um dia se esgotará, para criar novos mercados”, explica.  

Para Lemos, a Região Carbonífera pecou pela falta de planejamento. “Se basearam numa economia de extração mineira e de geração de energia termelétrica, e quando você trabalha para fechamento das termelétricas, o exaurimento de algumas minas de carvão, e você não preparou o município para sobreviver sem aquele recurso mineral aí você acaba tendo um declínio. Tem que ter um planejamento. Foi isso que faltou no passado. E não é isso que a gente quer, porque senão você acaba criando bolsões de miséria e é isso que temos que evitar”.

O secretário relata que foram feitos diversos estudos sobre os usos diversos das cinzas do carvão, que sobram após sua queima para geração de energia, boa parte das pesquisas feita pela CIENTEC, hoje praticamente extinta por iniciativa do próprio Governo do Estado. “Você pode colocar todas as cinzas de volta na cava, mas tem também uso comercial. Em Candiota, usam na indústria cimentícia, agregam um percentual de cinzas no cimento. Sei que no passado a Braskem fez um estudo e um trabalho em conjunto com a CIENTEC de fazer tijolo, com as cinzas do carvão, que custavam, se não me engano, 40% menos que o tijolo comum. E na própria rodovia de acesso à Braskem, a base do asfalto foi feita com cinzas de carvão”. Lemos relata ainda que no Nordeste, já há duas usinas térmicas usando as cinzas para a produção de asfalto. 

Reprimarização da economia

Michele Ramos, do Movimento pela Soberania Popular na Mineração (MAM)

Durante o evento Conversas Cidadãs, realizado na última terça-feira, em parceria entre o Sul21  e o Instituto Goethe, a integrante do Movimento Pela Soberania Popular na Mineração (MAM) Michele Ramos destacou há 166 projetos de mineração buscando a implantação no Estado. Para a ativista, o Rio Grande do Sul seria uma “nova fronteira de mineração” no país. Ela trouxe também dados que mostram que cada vez o Brasil extrai mais minérios, mas um percentual cada vez menor fica no país para ser utilizado como matéria-prima na indústria nacional. 

“Enquanto modelo é bastante contestável, socializa prejuízos e os lucros são altamente concentrados. O Rio Grande do Sul se insere nessa reprimarização, de se colocar nesse lugar de exportador de commodities, que é um lugar vulnerável. Você fica sujeito a ondulações e tem pouca margem de ingerência”, afirma Lorena Fleury. A professora de Sociologia da UFRGS destaca que neste processo são vendidos bens como água e solo, além da vida das pessoas. “Você oferece bens que em outros lugares são preservados. E pessoas que são expropriadas. E como se escolhe essas pessoas? São vidas que, infelizmente, não valem muito neste processo”. 

Fleury afirma que há um contexto de saturação dos principais estados mineradores, Minas Gerais e Pará, o que pode explicar o interesse do setor pelo Rio Grande do Sul. “Em Minas essa saturação é bem evidente. O preço baixou e é preciso minerar em escala bem maior para ter o mesmo lucro”. 

O presidente da AGAPAN, Francisco Milanez, também destaca a concentração provocada pela atividade mineradora. “Nos lugares minerados ficam a doença, a pobreza e o problema ambiental. E o lucro é realizado fora daqui”, afirma. 

Entusiasta da utilização do carvão como fonte de energia para a indústria gaúcha, a FIERGS foi procurada pela reportagem, mas não foi possível entrevistar nenhum representante da federação. 

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